A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu salvo-conduto, em dois processos julgados ontem, para o cultivo de cannabis sativa para uso medicinal. A decisão é a primeira favorável e abre caminho para uma resposta definitiva da Corte. A questão, com precedente anterior contrário da 5ª Turma, poderá ser levada à 3ª Seção — que uniformiza o entendimento das turmas de direito penal.
O cultivo é para a produção de óleo de canabidiol. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autoriza, em alguns casos, a importação do produto. Em ações judiciais, contudo, interessados alegam que esse procedimento tem alto custo, o que impossibilita alguns tratamentos de saúde.
Os pedidos de salvo-conduto têm como objetivo evitar prisões em flagrante e processos penais pelo cultivo. Um dos processos julgados ontem era para o cultivo de 15 mudas a cada três meses. O outro foi apresentado por uma senhora de 70 anos e seu sobrinho.
Após câncer de mama, ela desenvolveu depressão, insônia, artrose e dores gerais, que trata com canabidiol. O sobrinho começou a usar o produto para tratamento de transtorno de ansiedade na Califórnia, nos Estados Unidos. Ao chegar no Brasil, importou o óleo, com autorização da Anvisa, mas depois não pode mais custear o tratamento — de aproximadamente R$ 20 mil por ano. Ambos então passaram a cultivar uma pequena quantidade de cannabis em casa.
Relator de um dos casos (REsp 1972092), o ministro Rogério Schietti Cruz destacou que a questão deve ser tratada como de saúde pública, e não como criminal. “Hoje ainda temos uma negativa do Estado brasileiro, quer pela Anvisa quer pelo Ministério da Saúde, em regulamentar essa questão”, afirmou ele, acrescentando que milhares de famílias ficam à mercê da omissão. “Praticamente todo o mundo reconhece o uso medicinal da cannabis.”
De acordo com ele, todos os ministros da turma estão preocupados com a questão. “Oxalá esse recurso, embora se aplique a esse único caso, possa implicar uma mudança geral e estender a todos os brasileiros o mesmo direito de cultivar plantas medicinais, incluindo a cannabis, sem o risco de serem detidos, presos e processados como se fossem traficantes de drogas”, disse.
Além do processo de relatoria de Schietti, o tema foi julgado em habeas corpus de relatoria do ministro Sebastião Reis (RHC 147.169). Os dois votaram no mesmo sentido. “Não estamos discutindo aqui a licença, estamos discutindo se o tribunal deve obstar previamente a persecução penal à produção caseira de canabidiol para tratamento médico”, afirmou Reis.
No caso, foram apresentados diversos documentos como laudos médicos e certificados de curso para produção com finalidade medicinal. “O cultivo da planta para fins medicinais está fora da tipicidade”, disse o ministro, acrescentando que o uso recreativo tem relação de tipicidade com a norma incriminadora, o que não acontece com o uso medicinal.
Em julgamento anterior, a 5ª Turma negou salvo-conduto em 2021. O pedido foi feito por uma mulher que queria cultivar a planta e produzir o óleo medicinal. Ela usa o produto em tratamento de quadro grave de epilepsia refratária, hiperecplexia e síndrome de Ehler-Danlos. O recurso chegou ao STJ após o Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região (RS, SC e PR) permitir apenas a importação das sementes de maconha, mas não o plantio.
O relator da ação na 5ª Turma, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, observou em seu voto que a licença prévia para atividades relacionadas a matérias-primas de drogas é atribuição da Anvisa. Ainda segundo o ministro, esse tipo de autorização depende de critérios técnicos cujo estudo não compete ao juízo criminal. Fonte: Valor Econômico – Por Beatriz Olivon, Valor — Brasília 14/06/2022